A pediatra, de Andréa del Fuego: literatura de autodesamparo
Quando simpatizamos com personagens odiosos, admitimos, secretamente, que podemos ser pessoas horríveis.
Não são raras as personagens femininas na literatura mundial; no entanto, problemas enfrentados por mulheres receberam pouca atenção e/ou não eram centrais na ficção. As obras de arte, sobretudo as que se identificam como de alta cultura (é o caso da literatura), sempre elegeram determinados temas como dignos ou não de tratamento. O amor, por exemplo, hoje tão comum, só se tornou relevante e digno de ser o tópico fulcral de representação com a Eneida, de Virgílio. Porém somente com o Renascimento o assunto passa a ser encarado em sua complexidade filosófica. A mesma coisa acontece com problemas de gênero: invisibilizados, ignorados ou marginalizados outrora, nas últimas décadas vêm progressivamente ganhando espaço e recebendo discussões cuja profundidade lhes são dignas. Anatomia de uma queda, filme de 2023, é um dos melhores exemplos disso.
No entanto, é natural que grande parte dessas obras explorará as opressões vividas pelas mulheres. Consequência disso é que se tornam habituais as personagens femininas que não têm seus erros, defeitos e mesquinharias investigadas, visto que o foco recai sobre as maldades que fazem a elas. Daí por que considero tão interessante o enredo de A pediatra: Andréa del Fuego nos entrega uma narradora-personagem canalha que nos lembra, em seu cinismo e sinceridade, uma figura como Brás Cubas. Tal escolha deve ser vista com bons olhos, porque parte da humanização de figuras periféricas é o reconhecimento de que também elas podem ser desprezíveis: sem que essa ausência de caráter saia do terreno individual e resvale no coletivo. O gênero de Cecília, embora certamente condicione seus atos, não os determina.
O romance, lançado em 2021 e finalista do Jabuti, é um daqueles que nos interessa menos pelos acontecimentos narrados do que pela figura que os narra. Cecilia, pediatra que odeia crianças, parto humanizado e qualquer tipo de cuidado, é uma profissional medíocre que pouco se importa com a saúde de seus pacientes ou com reconhecimento: apenas quer terminar seu trabalho o mais breve possível, ser paga e ir para casa. Sua personalidade egoísta, aliada a frases memoráveis e a um cinismo mordaz, cativam a atenção do leitor.
Logo no início da narrativa, sabemos que o marido de Cecília está deprimido, mas a sua doença não inspira à médica qualquer empatia: “marido infeliz mina até um jequitibá” (p. 9). Ela não só não ajuda como atrapalha, o que faz com que seu cônjuge peça divórcio: “Eu costumo atrair deprimidos e piorar o quadro deles” (p. 37). Nesse ínterim, conhece Celso numa festa, pai de família, e não tem qualquer pudor em desejá-lo num primeiro momento e, posteriormente, ter um caso com ele. Celso, figura igualmente problemática, escolhe Cecília para cuidar profissionalmente de sua mulher grávida; a cena em que a pediatra participa do parto é a um só tempo perturbadora e hilária: a obstetra pede para que o pai e a médica empurrem a barriga da grávida, Cecília nos diz: “fiz toda força que pude, Celso menos, ficou com medo de machucar a mãe” (p. 12). Vale a pena transcrever o trecho final do capítulo, quando, após o parto, a pediatra vai dar pontos na mulher de seu amante: “Me sentei diante da vagina que recebia o mesmo pau que eu, agora rasgada pelo primogênito. Ela estava em outra órbita, drogada de hormônios, Celso também saiu da sala, provavelmente porque viu a amante costurando a vagina de sua esposa. Sentada no banco, dei mais pontos que o necessário. Por pouco não a fechei” (p. 13). Não pensem, porém, que o motivo dessa disputa é o amor por Celso, pois não surge dessa relação qualquer paixão: Cecília deseja-o unicamente pelo sexo.
Essa linguagem crua se estende ao longo do livro inteiro. Cecília é absolutamente sincera com seus desejos, por mais egoístas que eles sejam: embora não reflita propriamente sobre eles (isso cabe a nós, leitores). Cecília vive intensamente os próprios sentimentos e pensamentos.
Nos dias de hoje, como já dito, a humanização está na ordem do dia. Cada vez mais questionamos nossos preconceitos e atitudes equivocadas e buscamos, em público, esconder nosso lado “politicamente incorreto”, resultado de concepções pouco refletidas. Nada mais justo, pois devemos, sim, almejar progressiva equidade entre os seres e evitar qualquer tipo de atitude que ofenda nossos semelhantes. No entanto, isso não raro dá lugar a certo bom-mocismo hipócrita, que não admite que podemos, sim, ser seres horríveis. Ao lermos um livro como A pediatra e simpatizarmos com a sua narradora, e, em alguns momentos, até compreendê-la e lhe dar razão, somos forçados a admitir, ainda que secretamente, que não somos os seres perfeitos que esperamos mostrar em público, sobretudo nas redes sociais. Faz parte do processo de cura o reconhecimento de nossas chagas. E a literatura, longe de apenas nos expor caminhos para nosso autoaperfeiçoamento, pode também ser um caminho de autodesamparo.
José Roberto de Luna Filho
Que texto maravilhoso, extremamente bem escrito e bem conduzido! Eu já estava há um bom tempo com vontade de ler esse livro e agora vou lê-lo com certeza!