Balanço da obra de Carla Madeira: #1 Tudo é rio (2014)
Neste texto, que será dividido em três partes, analiso os três romances de Carla Madeira e tento esboçar uma síntese de seu universo ficcional.
Esta não é a primeira vez em que o Afinidades Eletivas trata de Tudo é rio. Li o livro no começo de 2022 e publiquei uma resenha, bastante curta e modesta, no nosso Instagram. Em março deste ano, Cristhiano Aguiar, autor de Gótico nordestino e também integrante do podcast, tratou do mesmo livro em sua Newsletter. Então qual o interesse em falar dele de novo? Minha primeira resenha, além de minúscula, foi feita numa época em que não havia lido os demais livros da escritora mineira. Aproveito, então, o ensejo criado pela reedição dos romances de Carla Madeira, que sairão numa box de projeto gráfico questionável, para não só apresentar considerações mais amadurecidas sobre Tudo é rio, como para tratar de A natureza da mordida e Véspera. Vamos a isso.
Muitos esperam que, por se tratar de best-seller, necessariamente a obra de Carla Madeira se iguale à de um Paulo Coelho e/ou à de romances infanto-juvenis. Porém as coisas estão longe de serem assim tão simples. Afinal, nos últimos anos, excelentes livros têm recebido grande aceitação por parte do público. E, nesse balaio da literatura contemporânea, mesmo os ruins são muito superiores a essa literatura best-seller tradicional. A meu ver, vivemos um momento bastante interessante, do ponto de vista editorial, sobretudo porque vem crescendo um público-leitor interessado em livros mais complexos. Além de tudo isso, não podemos esquecer que sempre é possível um livro permitir mais de uma “camada” de leitura, de maneira a poder agradar a leitores especializados e ao público em geral, interessado unicamente num entretenimento passageiro. Este parece ser o caso de Tudo é rio: adorado por muitos adolescentes e leitores não especializados, efetivamente se trata de bom livro. Não é, porém, um ótimo livro.
Há dois anos, minha avaliação do primeiro romance de Carla Madeira foi em geral positiva. Minha opinião continua a mesma, embora, agora, tenha encontrado mais defeitos e tenha clareza de que Tudo é rio deu certo apesar da concepção estética da criadora de seu universo. Mas comecemos pelos pontos positivos do romance. A grande força da obra reside tanto na complexidade interna de seus personagens quanto na coesão de sua arquitetura linguística e imagética.
O personagem mais complexo certamente é Venâncio. Isso porque nele coexistem a convenção e a inovação do romance. Ele é convencional, porque esperamos que nas cidades pequenas haja esse tipo bruto. Porém ele também é inovador, porque sua brutalidade é resultado de um caráter em verdade muito sensível: a violência não é senão um meio de que dispõe, por ser um homem grande, para externar o seu desamparo. Embora não seja lá tão estranho na literatura universal um brutamontes que, no fundo, não sabe lidar com seus sentimentos, a causa do desamparo e as suas consequências são bem pensadas e profundas.
Nos acostumamos aos grandes e superficiais amores de certa tradição folhetinesca que remonta ao Romantismo, mas esquecemos de que há em todo grande amor um lado sombrio (que podemos ver, por exemplo, na personagem Fernando, do romance Úrsula). Existe no amor, e isso fica mais patente nos amores mais obsessivos, uma relação em que não se busca qualquer vantagem pessoal: ama-se porque se ama, nada mais importa. E, no caso de Venâncio, Dalva ocupa mesmo uma função de extinguir o desamparo de seu espírito, de forma que, sem ela, não poderia viver. Esse amor como condição de existência faz com que o marceneiro recorra ao único recurso disponível para externar a agudeza de sua dor, que é a violência, quando percebe que perdeu a atenção de sua esposa para o próprio filho recém-nascido, Vicente: daí por que deseja destruir a criança. Os motivos de Venâncio são inverossímeis como a vida mais real.
Também considero bastante convincentes e interessantes as personagens de Lucy e Dalva. Seu erotismo possui essa condição existencial de que falei acima. Porém é bastante convencional o seu “donjuanismo” e a sua obsessão por aquele que não conseguiu conquistar. Lucy e Venâncio quase que reproduzem a estrutura das tentações que acometeram Cristo e muitos outros santos (e aqui lembro da afirmação de Cristhiano: Tudo é rio é um dos romances mais católicos da contemporaneidade).
Além do enredo, mencionei também a qualidade de concepção linguística. Me refiro à utilização, de começo ao fim, de várias metáforas e comparações que remetem a água. Essa coesão demonstra não só um trabalho atento à tessitura dos fatos e eventos, mas também um uso bastante criativo do signo “rio”, imagem já bastante desgastada. É inegável que Carla Madeira queira se filiar à tradição da prosa poética, e, quando pensamos em autoria feminina, é impossível não relacionar sua escrita à de Clarice Lispector. O peso dado ao trabalho de determinadas frases e imagens deixam essa tentativa de filiação muito explícita.
Agora falemos dos problemas. Se há personagens muito complexos e bons no livro, há igualmente personagens bastante irritantes. Ao dizê-lo, penso sobremaneira na figura de Aurora, que faz o papel de trazer ensinamentos e verdades positivas que o escritor considera importantes para o público. Nos momentos em que essa personagem aparece, o discurso poético-sapiencial é bem exagerado. Claro: esse exagero aparece em outras passagens, de maneira que a poesia se torna afetação e artifício tão somente. O melhor exemplo talvez seja o capítulo 4, em que aparece apenas a palavra “dor”. O recurso é utilizado uma única vez e contribui em nada para a construção e aprofundamento dos problemas colocados pelo enredo. Os escritores precisam entender que, se ele escrever bem, o público vai entender que ele escreve bem: essas performances de modernismo mal compreendido são desnecessárias.
Igualmente incomoda como a escritora não quer que o leitor perceba o caráter higienizado de sua obra. Trata-se de romance comportado, sem muitas inovações nem no enredo nem na forma. Faz o básico bem-feito e isso é já muito difícil. Para evitar que fique evidente esse atributo “limpinho” de sua escrita, Carla Madeira sapeca aqui e acolá um palavrão, uma cena de sexo. Aqui e acolá há também uma passagem que revela um pensamento feminista. Em termos de literatura contemporânea, é tudo nesse romance tão comportado que essas inserções soam bem artificiais. A meu ver, essa forçada coloquialidade e esse mal ajustado discurso político tentam sanar um problema que fica muito evidente quando comparamos os livros da escritora mineira a outros da contemporaneidade: a falta da representatividade. Atualmente, a prosa tem se dedicado a investigar os dramas ontológicos de minorias. No caso de Carla Madeira, apenas as mulheres adentram esse espaço; além disso, não dá para ignorar que o perdão de Dalva a Venâncio, apesar de verossímil, não se encaixa com aquilo que um leitor mais engajado esperaria.
Texto de José Roberto de Luna Filho
A gente indica
Recomendo profundamente a leitura do primeiro romance do curitibano Paulo Fehlauer, Extremo oeste. O livro foi vencedor, merecidamente, no Jabuti do ano passado, da categoria de melhor romance estreante. A narrativa se constrói com algumas tentativas, por parte do narrador, de compreender o sumiço (e provável morte) de um importante amigo, que vinha enfrentando dificuldades existenciais. Misturam-se de forma muito interessante palavra e imagem, bem como referências históricas e filosóficas, com um final inesperado e impactante, em que o político e o subjetivo emergem num todo complexo e indissociável.