Balanço da obra de Carla Madeira: #2 A natureza da mordida (2018)
Neste texto, discuto por que considero A natureza da mordida um livro tão importante para entender o projeto literário de Carla Madeira
No texto anterior, deixei claro que, apesar de possuir algumas ressalvas, gostei de Tudo é rio. Também pontuei que considero muito bom que faça sucesso um livro que consiga agradar ao leitor especializado e também ao leitor que quer apenas se entreter: quando o romance aceita muito facilmente diversas camadas de interpretação e diferentes níveis de abstração, realiza um grande feito. E foi por essa avaliação positiva do primeiro romance de Carla Madeira que me interessei pela leitura de sua segunda obra, A natureza da mordida (2018).
Procurei nas quase 230 páginas a boa escritora que transparecia em seu romance de estreia, na expectativa inclusive de ver corrigidos os erros, bastante comuns em obra primogênita; mas o que encontrei foi um sólido declínio em termos literários. A natureza da mordida, além de ser o livro menos popular dos três romances até agora publicados pela autora (e com isso não digo que seja pouco lido), é também o mais simplório e o que conta com mais defeitos. Em verdade, sequer consegui encontrar qualidades no livro.
A narrativa possui dois planos: um em que acompanhamos, pelos olhos de Olívia, os encontros com Biá, uma psicanalista aposentada, numa cafeteria; e um outro, em que lemos as anotações de Biá. No primeiro plano, ficamos sabendo do passado de Olívia, que se recorda dos motivos que levaram a seu desamparo no presente. Essas memórias vão surgindo motivadas pelas conversas com Biá. Nesse primeiro plano da história, porém, a vida da psicanalista permanece bastante enigmática, de forma que apenas no segundo plano vamos, aos poucos, montando o quebra-cabeça de sua biografia. Nessa breve descrição, parece um bom enredo, sim? Afinal, há uma narrativa que foge à tão injustamente odiada linearidade e que costura diferentes planos e perspectivas na construção da história.
Todos os livros de Carla Madeira se vendem como literatura “de grife”. Seja pela escrita poética, seja pelas referências à literatura e à filosofia ocidentais, sempre parece que estamos diante de um livro que, apesar do enredo rocambolesco e bastante tradicional, precisa ser bom também do ponto de vista técnico: no fim das contas, pensamos, como pode alguém com tantas referências escrever mal? Porém, se observarmos com calma, veremos que essas referências mobilizadas, bem como o estilo poético da prosa, são, pelo menos em A natureza da mordida, meros bibelôs que camuflam um enredo fácil e ingênuo. E que fique claro: o que estou criticando não é a opção por um enredo simplório, que é legítima e possui um público que deve ser respeitado, mas sim a tentativa explícita de se tentar filiar à chamada “alta literatura” por meio de artifícios.
Em A natureza da mordida, o artifício chega a pontos extremos. Se em Tudo é rio, como dito no texto anterior, já há algumas afetações, a presença, ao final do segundo romance da escritora, de uma espécie de “glossário” onde se apresentam as referências culturais utilizadas por Biá ao longo do livro deixa clara a vontade de que o leitor reconheça o repertório cultural da escritora. O último livro com glossário assinado pelo autor que lembro ter lido foi A bagaceira, do paraibano José Américo de Almeida, que contava, na última página, com uma lista de regionalismos que poderiam dificultar a leitura do público do Sul e Sudeste. Terá se percebido, com o sucesso de Tudo é rio, que esses elementos potencializam a viralização do livro?
Se ainda não convenci o leitor de que A natureza da mordida possui um enredo simples com bijuterias culturais, vou comentar uma referência em particular, que é, aliás, a meu ver, a principal inspiração do romance: o conto “A terceira margem”, de Guimarães Rosa, que compõe o livro Primeiras estórias. Nele, acompanhamos a narração de um filho cujo pai decide abandonar a família para morar no meio de um rio. Esse enredo, no entanto, certamente não se esgota nos seus acontecimentos: há um sentido filosófico que permeia toda a história, sentido já bem desenvolvido na fortuna crítica de Guimarães Rosa e que não poderei, por questão de espaço, comentar em detalhes. Porém é preciso enfatizar que um dos elementos que confere mais força a esse abandono é a ausência de justificativa: o pai toma essa decisão e se mantém silente; o silêncio do pai, e sua recusa a seguir uma vida em conformidade às expectativas dos demais membros, gera no narrador-personagem, o filho, um desamparo e uma culpa que vão sendo brilhantemente desenvolvidas ao longo do texto.
É precisamente essa partida sem explicações que une Biá e Olívia: esta foi abandonada por sua amiga de infância e aquela, pelo marido. Ocorre que, no caso do romance, não há espaço para a metafísica: o que sustenta a tristeza das personagens, uma tristeza bastante exagerada em relação ao que lhes aconteceu (o motivo de Olívia, em particular, é ainda mais bobo), é unicamente a perda dessas pessoas amadas. Essa melancolia seria facilmente justificada se fosse trabalhada ao longo do livro: o que significava Rita para Olívia? Biá possui alguma culpa em relação ao marido? No fundo, Olívia queria tomar o lugar de Rita? Biá sofre unicamente por não sofrer com o abandono do marido? Nada disso é elaborado. Há apenas sofrimento, não há desamparo. Que pessoas sofram por motivos fúteis e que não haja nenhuma grande por trás disso, vá lá, acontece, é algo que pode ocorrer a qualquer um: mas... isso interessa em um romance?
Em síntese, a referência a “Terceira margem do rio” de Guimarães Rosa está presente e serve de mote ao livro. Porém é necessário perceber que se utiliza uma interpretação no mínimo pueril da obra, o que torna a sua presença mero bibelô. Prova disso está inclusive no momento em que Biá cita a famosa frase dita pela mulher abandonada no conto, em que o uso dos pronomes de segunda pessoa vai demonstrando o afastamento progressivo da esposa em relação ao marido: “cê vai, ocê fique, você nunca volte”. Essa explicação é quase um senso comum da literatura brasileira, na academia, de tanto que já foi comentada. E Biá não acrescenta nada de seu à leitura do conto: ele apenas é transposto ao romance. Diferente, por exemplo, do que acontece nos livros de Milan Kundera, em que o narrador apresenta leituras muito particulares de figuras consagradas na cultura para que sirvam de base aos seus enredos. Vale lembrar, ainda, da cereja do bolo: no fim do romance, ficamos sabendo de todas as motivações que levaram ao abandono das personagens... o que é um absoluto contrassenso em relação ao conto de Guimarães Rosa.
Para finalizar, considero que o enredo do romance sequer é atraente. Não me senti preso a ele em momento algum, nem mesmo fiquei curioso para saber as motivações de seus personagens. A narração realizada por Olívia até que passa, mas as anotações de Biá são maçantes: essa psicanalista, que inclusive possui pouca inteligência emocional, encarna aquela figura do ser sábio (já comentado no texto anterior), que vai transmitir sua sapiência ao leitor e cujo discurso não raro se confunde com a “mensagem” do livro. Não bastasse tudo isso, ainda por cima, as anotações de Biá possuem uma afetação extrema, que só se justificaria se esses trechos fossem muito bonitos ou muito profundos, o que está longe de ser o caso.
É por esses e muitos outros motivos, que não caberiam aqui, que considero A natureza da mordida o pior dos três romances de Carla Madeira.
Texto de José Roberto de Luna Filho
A gente indica
A indicação de hoje fica com o poema “Direito à morte”, de João Cabral de Melo Neto, que foi publicado no livro Agrestes (1985).
Direito à morte
Viver é poder ter consigo
certo passaporte no bolso
que dá direito a sair dela,
com bala ou veneno moroso.
Ele faz legal o que quer
sem policiais e sem lamentos:
fechar a vida como porta
contra um fulano ou contra o vento;
fazer, num dia que foi posto
na mesa em toalha de linho,
fazer de seu vivo esse morto,
de um golpe, ou gole, do mais limpo.
Infelizmente não dá pra dar deslike aqui. Uma pena mesmo.