Balanço da obra de Carla Madeira #3: Véspera (2021)
O último livro de Carla Madeira mostra que a escritora mineira possui uma fórmula mais do que um estilo
Li Véspera ainda este ano, no mês retrasado. Ao finalizar a leitura, tive maior clareza a respeito daquilo que venho chamando de “projeto literário” de Carla Madeira: em verdade, é mais justo chamá-lo de fórmula. Talvez essas fórmulas não fiquem tão claras àqueles que tenham lido apenas dois dos três romances. Mas, para mim, sobretudo por ter lido segundo a ordem cronológica de publicação (isto é, iniciei com Tudo é rio e terminei com Véspera, o mais recente), as recorrências e repetições deram uma forte impressão de que a autora adotara um modelo fabril de escrita romanesca – e prefiro acreditar nisso a crer que seja um problema de limitação criativa. Os aspectos que vou ressaltar da leitura devem deixar claro o porquê.
Véspera, como os livros anteriores, possui aquele mesmo tom de prosa poética pitoresca, por vezes exagerada e por vezes apenas ruim. Houve uma significativa melhora em relação a A natureza da mordida, cujo estilo beira o intragável, e em muitos momentos vemos aquela Carla Madeira que tanto acertou em Tudo é rio. Porém, nesse terceiro romance, o arcabouço poético não possui a coesão imagética do primeiro: até se ensaia, aqui e acolá, a repetição de metáforas que remetem ao título da obra. No entanto, essas imagens variam em excesso e há mesmo passagens que impressionam tanto pela aleatoriedade quanto pelo mau gosto. Cito uma apenas para ilustrar:
“No alto do abacateiro, Abel derramou-se num contentamento espumoso como uma cerveja gelada” (p. 162).
Não era suficiente dizer que Abel teve grande contentamento, ou mesmo que se derramou num grande contentamento... Foi preciso recorrer a uma imagem que de forma alguma se encaixa no trecho, apenas a fim de manter esse registro da narrativa “empoeticizada”.
Também se repete a estrutura não linear de exposição dos acontecimentos. Há dois planos narrativos: um que conta a história de Vedina (capítulos que vão do 1 ao 18) e explora a forma como a personagem abandonou o filho de cinco anos num momento de raiva e, logo em seguida, ao se arrepender, não encontrou mais a criança; outro que conta a história de dois irmãos gêmeos, Caim e Abel (capítulos que vão do 18 ao 1). Abel é, inclusive, o marido de Vedina e pai da criança abandonada. Como se pode esperar, os fios desse acontecimento drástico narrado no começo do romance vão se desenrolando até se conectarem ao segundo plano narrativo. Essa lógica funciona bem no primeiro livro, mas, no terceiro, se torna chato por ser tão previsível. Aliás, a autora não economizou na previsibilidade: a numeração dos capítulos entrega de bandeja ao leitor que as duas histórias vão se entrelaçar, e que o primeiro plano é resultado do que aconteceu no segundo.
As recorrências não acabam por aí. Temos a figura “sábia” que traz uma dose de sabedoria não solicitada ao leitor, que já foi Dalva, Biá e agora se chama Padre Tadeu. Ele inclusive é responsável por explicar uma das ideias filosófico-literárias mobilizadas no romance e demonstrar como se pode estragá-la, destruindo toda a sua complexidade. Afinal, a longa digressão do padre sobre Caim e Abel é concluída com uma reflexão bastante simplória: não se deve pedir dos filhos mais do que eles podem dar.
Outro sintoma dessa simplificação é o tratamento que recebe uma das referências do enredo (e novamente tal referência é explícita, assim como ocorre em A natureza da mordida): Jorge Luis Borges. A escritora utiliza a seguinte frase do argentino como epígrafe: “Houve pela primeira vez a morte. Já não me lembro se foi Caim ou Abel”. Em entrevista à Folha, e isso é importante, Carla Madeira chama apenas de “frase”, não diz se pertence a conto, poema ou ensaio; tampouco menciona o título da obra a que pertence o trecho. Menos ainda de quem é a tradução, uma vez que o original certamente foi formulado em língua espanhola.
Essa frase foi retirada de um poema de Borges que pertence ao livro El oro de los tigres. Ele faz parte de um conjunto com outros 12 e se chama “Génesis, IV, 8”. Como ele é curto, vou citá-lo por completo:
Fue en el primer desierto.
Dos brazos arrojaron una gran piedra.
No hubo grito. Hubo sangre.
Hubo por primera vez la muerte.
Ya no recuerdo si fui Abel ou Caín.
O trecho utilizado por Carla Madeira, no original, possui uma diferença significativa, pois poderia ser, em verdade, assim traduzido: “Houve pela primeira vez a morte. Já não recordo se fui Abel ou Caim”. “Fui”, não “foi”. Isso muda tudo no poema, porque lhe dá um sentido íntimo e pessoal inevitável. Além disso, seu sentido passa a ser muito mais filosófico, porque Caim e Abel precisam ser vistos como metáforas. Deixa de haver a possibilidade de mera releitura do famoso acontecimento bíblico do primeiro assassinato e da primeira morte. Me parece que a frase de Jorge Luis Borges foi utilizada, assim como o conto de Guimarães Rosa, como bibelô que ajuda a dar legitimidade intelectual a um romance bastante simples.
A autora provavelmente fez pesquisas sobre o assunto e encontrou na internet essa frase descontextualizada, deu-lhe uma interpretação não muito clara, a meu ver literal, e a colocou no livro. Porque, fora de contexto e com a tradução citada pela autora, poderíamos entender que a morte se apresentou tanto a Caim quanto a Abel: pois o assassino também descobriu, no ato, as implicações da morte, que pode inclusive lhe atingir. Matar a um irmão, a um semelhante mais semelhante ainda, traria de forma mais evidente o drama da própria morte como possibilidade. Nada disso aparece em Véspera: talvez apenas interesse a Carla Madeira, nessa frase, a morte como um ato ilícito e a culpa que pode se espraiar de um irmão para outro (pois “já não me lembro mais se foi Caim ou Abel”), visto que a frase é epígrafe para um capítulo em que o irmão “do bem” descobre atos ruins praticados pelo irmão “do mal”.
Ainda quero fazer algumas considerações sobre essa escolha de enredo, antes de concluir. Trabalhar dois irmãos que serão opostos produz dificuldades àqueles que queiram fazer algo de inovador, sobretudo quando eles recebem nomes que já indicam essa rivalidade, pois isso já foi feito largamente. Ao falar disso, vem logo à mente o romance de Machado, Esaú e Jacó (e aqui até a referência à Bíblia já está posta). Quando se trata de referência a Caim e Abel, pintar Abel como o mal e Caim como o bom é uma inversão bastante previsível e esperada. Além disso, venhamos e convenhamos, a explicação para o registro desses nomes é no mínimo boba, pois é resultado da vingança do pai que tinha como alvo a mãe. Mas, no romance, esse problema que poderia ser resolvido na justiça é tratado como grande afronta.
Porém o principal defeito do romance é essa visão de mundo regular e estável que o enredo revela. Abel é ruim e Caim é bom como que por essência: o contato das personagens com a realidade e a sociedade não serve para sua formação; serve apenas para potencialização e confirmação dessa essência. Assim, não há propriamente análise psicológica no livro; há, em verdade, observação da psicologia das personagens.
Véspera, embora possua enredo mais divertido e dramático, com doses aceitáveis de novela mexicana, e seja melhor do que A natureza da mordida, é inferior a Tudo é rio. No entanto, mostra com clareza os procedimentos fabris a que recorre Carla Madeira na confecção de suas narrativas, bem como o caráter simplificado da mundividência que se extrai da leitura de sua obra: são livros que, apesar das plumagens de alta literatura, servem tão somente para o divertimento, à diferença de muitas outras obras da literatura contemporânea, que só precisam de alguns anos para que recebam da crítica especializada o título de obra-prima.
Texto de Roberto de Luna
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Spoiler: vai ter resenha de Corpo desfeito, de Jarid Arraes.