Em tempos de livros de autoajuda e de coachs quânticos, muito se fala sobre “propósitos” a serem estabelecidos em nome de uma vida feliz. Segundo essa crença, é necessário que as pessoas tenham em suas vidas determinadas metas e objetivos em torno dos quais devem girar as ações dos indivíduos.
É evidente que faz parte da arte de viver ter em mente, ainda que nem sempre de modo tão claro, o que se considera uma vida bem vivida. E parte disso naturalmente inclui o estabelecimento de objetivos a serem alcançados que tornem a realidade mais próxima do ideal que estabelecemos. Porém não se comenta que não há uma única forma de lidar com esses objetivos; e mais: que a forma como se lida com eles é de suma importância. Afinal, há as obsessões... As malditas ideias fixas que tanto assombraram Brás Cubas. Além do famoso finado-narrador, agora em evidência, há um outro romance que nos faz pensar sobre como as obsessões, longe de trazerem uma vida alegre, podem ser, em verdade, os maiores obstáculos à paz interior.
Dor fantasma, de Rafael Gallo, vencedor do Prêmio José Saramago de 2022, conta a história de Rômulo Castelo, um talentoso pianista e rigoroso professor universitário de música que tem por objetivo executar com perfeição uma peça considerada “intocável” de Franz Liszt. Com determinação inabalável, pratica todos os dias, à espera de um concerto na Europa, em que esperava demonstrar, pela primeira vez, a um público boquiaberto a concretização rítmica daquela complexa partitura, o Rondeau fantastique. Sua vida pessoal, no entanto, está longe da perfeição com que reproduz as notas da composição: não tem amor pela esposa, que considera inferior por não ter seu conhecimento sobre arte; despreza o filho, por ser uma pessoa com deficiência e, portanto, incapaz de seguir o legado do pai e do avô (também pianista). Na universidade, conta com o apoio de apenas uma aluna e um professor: os demais acadêmicos ou o temem ou o odeiam. Porém para Rômulo todo o resto se torna aceitável, pois ser o mais importante é ser o grande intérprete de Liszt.
Surge, no entanto, um empecilho à concretização de tal objetivo: um atropelamento torna necessária a amputação da mão direita de Rômulo. Ensaia-se ao leitor uma história de redenção, em que o pianista verá que precisa, para realizar suas tarefas cotidianas, do apoio das pessoas que antes ele desprezava. Ou mesmo que, ao não se preocupar com suas relações, estava fugindo ao essencial. Mas não: o que movimenta o romance é precisamente a incapacidade que o protagonista possui de aceitar aquilo que não seja perfeito, de acordo com seus parâmetros de viver autêntico e verdadeiro. Permanece o mesmo, mas agora é incapaz de reproduzir o Rondeau fantastique: para o personagem, é como se tivesse se tornado uma cópia falha de um Rômulo ideal.
Freud compreendia nossos desejos de forma bem interessante. Para ele, é próprio ao desejo a sua impossibilidade de plena satisfação. É como se, por trás de todo objeto almejado, houvesse um outro objeto, interdito, que com a coisa desejada se identifica; porém, uma vez que a origem do desejo é por esse objeto interdito, nossos desejos são satisfeitos apenas em parte. Compreender a economia das vontades é perceber que todo desejo, por mais que pareça revelar o âmago de nosso ser, é algo contingente, incapaz de estancar a falta essencial que constitui o humano.
Nesse sentido, há íntima relação entre a não satisfação dos desejos e a vida ela mesma, uma vez que é o contínuo desejar que nos faz seguir vivendo. Considerar determinados objetivos incontornáveis para se viver uma boa vida é confiar coisa tão complexa quanto a existência àquilo que pode, de um dia para o outro, se extinguir: eis o erro do personagem principal do romance. O drama de Rômulo não é o acontecimento fortuito que lhe faz perder um braço, mas uma personalidade que confunde a vida, múltipla e heteróclita, com uma verdade maciça e monológica. De forma que, mesmo quando tem acesso a uma mão mecânica de última geração, a percepção de que aquele estranho e metálico complemento seria incapaz de reproduzir à perfeição a música de Liszt é suficiente para que não queira mais utilizá-la.
Ao contrário do que se pensa, uma vida cheia de sentido é perigosa, na medida em que se confunde o ato de viver com o ato de perseguir determinados objetivos. Uma vida sem sentido é uma vida em que se percebe a transitoriedade das coisas, e isso não implica necessariamente considerar que a vida não seja boa e que não tenha prazeres que lhe justifiquem. Como diz Barthes, a falta de sentido é já um sentido. Porém mais interessante do que constatar essa ausência de sentido, segundo esse autor, é buscar o que está para-além dos sentidos, o que não se permite conformar em juízos simples e delimitados: a complexidade indomável da vida. O livro de Rafael Gallo nos faz refletir sobre tais problemáticas, na medida em que questiona a maneira como a mentalidade contemporânea enxerga as glórias pessoais.
José Roberto de Luna Filho
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Juliana de Albuquerque e José Roberto de Luna Filho entrevistaram Fabiane Secches a respeito da escritora Elena Ferrante. Você pode ouvi-lo clicando aqui.
Texto excelente. Fiquei com vontade de ler Rafael Gallo.