Os poemas que mais me atraíam em Carlos Drummond de Andrade sempre foram aqueles que trabalhavam o tema da memória. É inegável que essa, aliás, seja uma das grandes “temáticas” (se assim pudermos chamar) de sua poesia. Não à toa uma de suas obras mais famosas, Boitempo, possui o subtítulo “esquecer para lembrar”. Por muito tempo essa frase circulou minhas ideias sem que exatamente fizesse sentido, embora algo nela me cativasse. Somente a maturidade, a preocupação com o acúmulo das coisas que já se foram, me fizeram entender que há uma beleza por vezes maior em lembrar do que em viver. A infância, por exemplo, tem sim, é certo, suas delícias. Porém não é a infância empírica, de fato vivenciada, que, na vida adulta, entendemos como origem de nossos males ou como paraíso perdido. É a infância lembrada. Esquecemos para lembrá-la. Mais que viver, é preciso lembrar.
Há dois poemas de Drummond sobre a memória que sempre carrego comigo. O primeiro é “Cerâmica”, que está no livro Lição de coisas:
Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.
Sem uso,
ela nos espia do aparador.
Sempre me causa espanto a precisão de Drummond. Assim como os poemas cabralinos, esse possui uma dimensão do sentido bastante imagética, que, para ser compreendida, pede um exercício de imaginação, pois, transformada em sentenças, a “explicação” do poema é bastante simples até. É preciso imaginar um utensílio tão comum como uma xícara, que, apesar disso, nos causa estranheza. Faz parte de nossos bens, mas não se conforma a eles. Essa xícara, cheia de rachaduras, mesmo quando escanteada, mesmo quando a ela não damos uso, se apresenta, sobressalente, pelos vidros do aparador enquanto tomamos tranquilamente um café da manhã. Não a vemos senão, talvez, com o canto do olho, mas ela está sempre e inexoravelmente lá, à espreita. Só com imaginação é possível apreender o papel que as nossas esquecidas e somadas cicatrizes (que inevitavelmente acumulamos por estarmos vivos) desempenham nesse poema: apenas nos encaram, sem que mais nada precisem dizer, enquanto, distraídos, desfrutamos dos prazeres rotineiros.
O outro, um de meus favoritos, mais conhecido, é “Memória”, publicado no livro Claro enigma:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
Muito mais que lindas,
Essas ficarão.
Enquanto o poema anterior tratava daqueles cacos de memória com que, se não manejarmos com atenção, podemos nos machucar, neste outro há uma visão bastante otimista das nossas recordações. Na primeira estrofe, o poeta fala da esquisitice que é a lembrança: amar e desejar aquilo que não mais faz parte de nossa vida, aquilo que tomou rumo sem volta ao passado. Esse estranho amor, no entanto, se impõe, porque, apesar de irracional, algo nos nega o esquecimento de certas coisas e não há memória que possa conter esse desejo impensado de continuar amando o que se foi. É por causa desse amor ao perdido, nos diz, na terceira estrofe, que as coisas do presente, que de fato vivemos, por mais próximas que sejam de nossa existência, já não nos satisfazem mais, pois nosso coração está confundido. Ao amar o que se foi, nos fica impedido o amor pelo que está e é. No entanto, há, nessa tenebrosa transação, um ganho: essas coisas que já não mais tornam, precisamente porque não tornam, são algo mais do que belas (pois a beleza vem do que é tangível), são de qualidades tão misteriosas quanto o impulso que nos faz mantê-las: e por serem de tal maneira inefáveis, elas continuam.
Viver é amar e perder a todo instante. Embora a perda nos seja dolorosa, há um sentido em acumular alegrias, pois, por mais que passem, elas se tornam uma secreta vitória.
Texto de