Memórias póstumas de Brás Cubas: ainda, de novo
A obra de Machado mostra que o riso diante das contingências do mundo nos une enquanto humanos.
Memórias póstumas de Brás Cubas voltou à moda ao ser descoberto pelo público de língua inglesa. Digo “descoberto” porque certamente não o conheciam, uma vez que a língua portuguesa e os seus autores, com uma ou outra exceção, ainda são vistos com certo exotismo no resto do mundo, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Não acredito que haja lá tão grandes problemas em relação a isso: não é de hoje que guiamos nossos gostos a partir de opiniões estrangeiras. Se essa influência servir para reaproximar os mais jovens de um livro tão importante para a nossa literatura quanto esse, o saldo a meu ver é bastante positivo. E talvez a paixão por Machado, da parte de norte-americanos, sirva para as pessoas perceberem que a dimensão desse romance ultrapassa a importância provinciana que a sua adoção em vestibulares, ao lado de figuras como José de Alencar e Aluísio de Azevedo, leva a crer.
Acredito que a forma como Machado é adotado na educação básica prejudica o interesse dos brasileiros em sua obra. Primeiro porque a adoção de um autor como estudo obrigatório naturalmente já o coloca num lugar de literatura difícil e algo inacessível. E Machado de Assis, em particular, que é quase uma metonímia de alta literatura, já possui, por si só, a “má fama”. Segundo porque a perspectiva teórica assumida nos livros e materiais didáticos, segundo a qual os romances e contos machadianos representam uma crítica à burguesia e à sociedade da época, retira muito do caráter descontraído do texto. Quero dizer que, ao se tentar dar a Machado as cores brasileiras, a de um autor preocupado com a realidade nacional, retira-se, paradoxalmente, um elemento muito brasileiro: o caráter cômico e dessacralizado de suas narrativas.
É que essa veia humorística, que não leva as coisas tão a sério, apesar de o entendermos como algo muito brasileiro, é o que dá a Machado seu caráter cosmopolita. Esse cosmopolitismo machadiano, que, para alguns, talvez retire a importância do Brasil para sua produção ficcional (e, nesse caso, o país não seria visto como terra tão fértil assim para produzir grandes mentes), não pode ser entendido como um pertencer a lugar algum. É evidente que o Brasil está presente na sua obra e que foi do trabalho com a nossa realidade que brotou sua genialidade. A obra de Machado é, está claro, fincada num tempo e num espaço. Mas isso não significa que devamos entender um escritor brasileiro como alguém que inevitavelmente vá encarar a representação da realidade que se lhe apresenta como fim último de sua arte. Se assim fosse, dificilmente um romance como Dom Casmurro interessaria a leitores que não fossem interessados no Brasil do século XIX. E dificilmente Memórias póstumas faria sucesso na América.
A primeira vez em que decidi encarar esse autor que todos consideravam difícil foi no meu terceiro ano do ensino médio. Na ocasião, tinha de ler o romance para fazer uma prova. Claro que poderia ter lido um bom resumo na internet, porém, naquela época, estava começando a descobrir esse prazer muito íntimo que a literatura pode nos proporcionar: aquele momento em que descobrimos num personagem sentimentos e ideias que nem sabíamos que tínhamos. Aquele momento em que saímos de nós mesmos para nos encontrarmos. É claro que tive dificuldades com o vocabulário. Minha primeira leitura foi bastante lenta, tinha sempre um minidicionário de português por perto (e, quando não encontrava nele uma palavra, recorria ao gigantesco dicionário Houaiss) e um lápis para grifar e “traduzir” o léxico obscuro.
O fato é que, conforme a história ia fluindo com maior rapidez, não era esse Brasil do século XIX que se descortinava, nem mesmo as críticas a uma certa burguesia carioca. O que me surgia naquelas páginas era a minha própria hipocrisia, a minha própria moral fragmentada, a minha própria vaidade. Ao contrário de outros livros de leitura obrigatória, em que nos vemos tentados a encontrar os traços de escola e de época, o que encontramos em Machado é essa capacidade de autoconhecimento indireto que faz com que os seus leitores atuais sintam se tratar de um romance contemporâneo.
Esse caráter cosmopolita da obra de Machado, de que venho falando desde o início, parece ainda mais evidente quando observamos as suas influências. O público brasileiro e português da época certamente foi surpreendido com aquela narrativa esfacelada que caracteriza os romances machadianos, mas em particular Memórias póstumas e Dom Casmurro. Isso porque competiam pelo apreço do público e da crítica narrativas, em termos formais, absolutamente similares em sua convencionalidade e linearidade. Em vez de se colocar sob a sombra de um José de Alencar, ou mesmo de importar, à maneira de Eça de Queiroz, o cientificismo de Zola, Machado de Assis construiu um livro que tem muitas semelhanças com a obra The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman (A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy), do inglês Lawrence Sterne. Porém o autor de Quincas Borba apreendeu a forma e a apurou, eliminando o exagero e os aspectos por vezes cansativos do livro de Sterne. O escritor carioca recusou as tendências e convenções de época, estilo e escola e preferiu o humor como chave de leitura da realidade.
Esse humor que perpassa toda a narrativa machadiana, e que está muito fortemente presente nas Memórias póstumas de Brás Cubas, leva a uma posição diante do real que é de questionamento e não de afirmação. É nesse riso algo melancólico que reside a sua capacidade de diálogo com leitores de outras épocas e lugares: rir das convenções, certezas e ações humanas se constitui mesmo uma tradição da literatura mundial, em que se encaixam as mais diversas obras, dos mais diversos autores, provenientes das mais diversas culturas. E se unem por esse lastro negativo. Para essa forma de se fazer ficção, os fatos estão em segundo plano, na medida em que lhe interessa muito mais o que há de ridículo nesses laços simbólicos que nos unem e governam.
Para finalizar, ilustro meu argumento com uma famosa passagem. É bem famoso o dilema de Brás Cubas ao descobrir que Eugênia, moça por quem se cria apaixonado, era coxa (“Por que coxa, se bonita? Por que bonita, se coxa?”). Sim, nessa passagem há um questionamento aos ideais de amor ingênuo do amor romântico. Porém há também a exposição das bases mesquinhas e demasiada humanas de nossos sentimentos. O episódio como um todo é de tal forma constrangedor que só um defunto poderia contá-lo sem corar: a moça tenta segurar o pretenso noivo e o pretenso noivo tenta se afastar sem se sentir mal pelo ato reprovável (pois reconhece que o único defeito da moça é a vergonha que lhe causaria ser casado com uma coxa). Rimos desse episódio cômico, mas sobretudo porque conseguimos compreender, embora envergonhados, a atitude de Brás Cubas, mesmo se agíssemos de maneira diversa. E também os estrangeiros entenderão que, por trás das nossas etiquetas e boas ações, há inegavelmente uns interesses escusos. Curiosamente, e isso demonstra como o riso une as culturas e pessoas, é possível encontrar similar episódio em Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, contemporâneo de humor e época. Termino com a sua transcrição:
“[...] – Não, casei-me na província de Smoliensk. Só que ainda antes disso um ulano a trouxera, a minha esposa, futura, e junto com ela a pane mãe, uma tante e mais uma parenta com o filho adulto, e da própria Polônia, da própria... e me cedeu. Era um tenente nosso, um jovem muito bom. Primeiro ele mesmo queria se casar, mas não se casou porque descobriu que ela era coxa...
– Quer dizer então que o senhor se casou com uma coxa? – exclamou Kalgánov.
– Com uma coxa. Na ocasião os dois me esconderam o problema e me enganaram um
pouquinho. Eu pensava que ela saltitava, ela estava sempre saltitando, mas eu achava que era de alegria...
– Alegria porque estava se casando com o senhor? – berrou Kalgánov com uma sonora voz de criança.
– Sim, de alegria. Mas aconteceu que a causa foi totalmente outra. Depois, quando já
tínhamos nos casado, na mesma noite do casamento, ela o confessou, e de um jeito muito
comovente me pediu desculpa, dizendo que uma vez, quando era mocinha, pulara uma poça e tinha prejudicado a perna, ih-ih!
Kalgánov caiu a valer na risada mais infantil e quase desabou em cima do sofá. Grúchenka
também riu. Mítia estava no auge da felicidade” (Dostoiévski, 2012, p. 561).
Referência
DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázov. Tradução de Paulo Bezerra. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2012. v. 2.
Texto de José Roberto de Luna Filho
A gente indica
A indicação de hoje é de Juliana de Albuquerque, que está lendo e adorando o livro Tinker tailor soldier spy, do escritor John Le Carré. Trata-se um dos romances de espionagens mais famosos de John le Carré. O protagonista desse livro é um master spy chamado George Smiley. Smiley foi aposentado compulsoriamente depois que uma operação deu errado, e agora ele é chamado de volta para investigar a existência de um agente infiltrado no coração serviço secreto britânico.
O livro saiu traduzido ao português pela Editora Record com o título O espião que sabia demais.
Este mês sairão mais dois episódios do nosso podcast. Enquanto eles não saem, confere os dois últimos:
Conversa com Fabiane Secches sobre Elena Ferrante