O livro que Gabo sempre quis escrever
Gabriel García Márquez define El otoño del patriarca como um longo poema sobre a solidão do poder.
Quando comecei, em 2013, a estudar espanhol, me desafiava a ler os clássicos da literatura daquela língua. O primeiro nesse idioma que consegui terminar foi El fútbol a sol y sombra (O futebol ao sol e à sombra, na edição nacional), de Eduardo Galeano. Após encarar o uruguaio e conseguir terminar Las travesuras de una niña mala (As travessuras de uma menina má), de Mario Vargas Llosa, me interessei por ler um pequeno romance chamado Del amor y otros demonios (Do amor e outros demônios), de um tal Gabriel García Márquez, que à época, quando eu possuía os mal completados 17 anos, não me era assim tão familiar. O que me chamou a atenção mesmo foi aquele título sonoro e inusual, na lombada fina e desgastada que estava espremida entre livros mais grossos e bem-conservados da biblioteca do Instituto Cervantes de Recife.
Esse livro me causou profunda impressão, pois ele encontrava a aura mítica que reside numa realidade das mais cruas. Sei que García Márquez ficou marcado por personagens voltando da morte por puro tédio e por chuva de pétalas amarelas, mas, quando lemos suas outras obras, percebemos que o aspecto fabular de suas histórias prescinde de acontecimentos fantasiosos.
Nos anos seguintes, continuei lendo, embora de modo mais esparso, os romances de Gabriel García Márquez. Porém foi somente em 2022 que conheci El otoño del patriarca (O outono do patriarca), que, para mim, é sua melhor obra. E foi com muita surpresa que descobri, depois, ser esse livro um pouco esquecido tão importante para o próprio Gabo. Em entrevista concedida a Plinio Apuleyo Mendonza (publicada no livro El olor de la guayaba, traduzido como Cheiro de goiaba), o escritor diz que se trata da obra que mais lhe interessa em termos de aventura poética. Diz ainda, em outro momento, que é o romance que sempre quis escrever e nunca pôde. Se El otoño del patriarca desbanca, na opinião do próprio autor, preciosidades como Cien años de soledad e El amor en los tiempos del cólera, certamente há nele algo de especial. Gabo não é tão claro quanto a isso, então vou aqui arriscar os motivos pelos quais essa obra se destaca em sua produção.
A narrativa se centra na figura de um ditador perdido nos delírios provocados pelo desejo de ser mais do que um homem. Esse déspota chegou ao poder de um pequeno país do Caribe graças à intervenção dos ingleses no país e se manteve por causa do apoio estrangeiro. Era, na verdade, um simples homem do povo que se viu, de repente, alçado à posição de patriarca do país e a ela se agarrou como pôde.
A história, apesar de contar sua vida, é mais sobre sua morte. O livro já se inicia com o relato de que aquele ancião de sabe-se lá quantos anos enfim morreu de velhice e seu corpo é encontrado já carcomido no local de onde governava seu país. Porém a sua vida também foi muito mais uma sobrevivência, uma morte em vida. Apesar de nunca ter perdido de vez o poder, gastou as horas de sua existência numa luta constante para evitar a própria derrocada.
Ao longo das páginas, vai se formando a figura menos de um déspota do que de um súdito: súdito do próprio poder, é claro, mas súdito. Para se manter no poder, precisa abrir mão de fazer aquilo de que gostaria em nome daquilo que deveria fazer. Em dado momento, revirando seus escritos de memória, vê que um dia escreveu que se chamava Zacarías (nome, aliás, que é mencionado apenas esta vez). Ele lê e relê aquelas palavras, mas percebe que elas lhe trazem um sentido muito longínquo e alheio a ele mesmo. Afinal, a partir do momento em que assume o governo daquele país, torna-se, paradoxalmente, submisso aos próprios governados, pois os traços de seu próprio Eu são apagados pela imagem de líder poderoso. E como é onerosa a manutenção dessa imagem! Quanto mais a mantém, mais se torna ridículo, pois engana a si próprio antes de enganar ao povo e começa a acreditar em tudo que pode, deve e precisa fazer. Em uma das passagens mais engraçadas, por exemplo, suplica aos astrônomos do governo que lhe arranjem algum fenômeno sideral para presentear e reconquistar uma moça em cujos amores não pode mandar. Um eclipse total do sol salva o ditador do desespero e provavelmente o pescoço dos astrônomos.
É que o Zacarías, a figura de carne e osso engolida pelo facínora latino-americano, possui uma escondida lacuna que crê ser capaz de tapar com aquela posição de mando. Não sem tristeza sua mãe reconhece que ele se trepa na frágil árvore do poder para resolver tudo aquilo que lhe faltou a ele quando criança. Sua desumanização tem um sentido para o personagem, como já disse antes, mas também tem um sentido para o romance como um todo, pois a história não é apenas sobre um ditador fictício ou alegórico, mas sobre um ditador metafórico, um ditador que se refere a todos os ditadores (vivos, mortos, reais, imaginários) e ao próprio poder ele mesmo. Por isso Gabriel García Márquez o definiu como um longo poema sobre a solidão do poder. O escritor colombiano resume assim o seu interesse pela escrita desse livro: “[...] sempre acreditei que o poder absoluto é a realização mais alta e mais complexa do ser humano e que por isso resume ao mesmo tempo toda a sua grandeza e toda a sua miséria” (Márquez, 2021, p. 128).
Compõe esse poema sobre a dificuldade do humano em lidar com suas fragilidades e limitações uma forma bastante sui generis. O livro possui uma estrutura não linear e em espiral, pois, em cada capítulo, há fatos novos, fatos antigos e fatos recontados, visto que sua estrutura fabular e mítica exila a verdade. O relato (porque tem ares de relato, mais que de romance) é fantasioso, uma vez que é também fantasioso e obscuro o poder e suas formas de exercício. Além disso, Gabriel García Márquez recorre a uma estrutura de narração que reforça o caráter a contragosto coletivo e onírico que possui a figura de um ditador, pois as frases que compõem o relato são longuíssimos períodos (alguns com mais de duas páginas) em que as vírgulas separam não só sucessivas extravagâncias, mas também diversas vozes e pontos de vista de um único ato. Numa frase se misturam as perspectivas tanto do déspota quanto de seus subordinados, de maneira que a linguagem se liberta da ilusão de construção individual que o seu uso cotidiano costuma ter e se potencializa como espectral, inconsciente e assujeitada.
El otoño del patriarca continuará um livro vigoroso por tanto tempo quanto permanecer o apego ao poder, por menor que ele seja, como forma de libertação da contingência, essa coisa fatal que nos torna humanos.
Referência
MÁRQUEZ, G. G. Cheiro de goiaba: conversas com Plinio Apuleyo Mendoza. Tradução de Eliane Zagury. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2021.
Texto de
Adoro aquela história que ele conta (acho que é no "Cheiro da goiaba") de que sempre quis escrever também um livro sobre um povoado que se acaba por causa de um boato gerado pelo sonho de uma idosa.
Adorei a resenha! Me fez pegar o livro aqui da estante e começar a leitura. Realmente, a linguagem, aqui, vai por caminhos interessantíssimos de mistura de pontos de vista e vozes nesses períodos (quase) sem fim.