Paulo Honório: um narrador fragmentado
A complexidade de Paulo Honório é um dos elementos que dão complexidade ao romance S. Bernardo
Li um livro de Graciliano Ramos pela primeira vez em 2013: o romance Vidas secas. Embora tenha gostado, não me marcou, tanto que sequer busquei outras obras do escritor. Para mim, apenas aquela obra clássica era de leitura obrigatória, então sentia que meu dever estava cumprido com o Velho Graça. Até que, em 2018, tive de ler S. Bernardo numa disciplina da graduação. Ao terminar, tive certeza de que aquele era um dos romances mais importantes que li na vida. Hoje, após ter escrito várias páginas sobre ele e ter relido mais de dez vezes, reafirmo que se trata, para mim, de uma das grandes obras da literatura mundial.
Paulo Honório, o narrador-personagem, é uma das figuras mais complexas da ficção. Isso porque, se não lermos com atenção, podemos nos enganar. E a crítica, a meu ver, se engana muito. Em geral, os pesquisadores da obra querem entendê-la em relação com o seu contexto imediato (Revolução de 1930) e com a própria figura de Graciliano Ramos, que se tornou militante do PCB oficialmente em 1942, embora mencione a leitura d’O capital desde a década de 1910 em cartas. Nessa perspectiva, o dono da fazenda São Bernardo, preocupado unicamente com o lucro, exemplificaria as tendências burguesas de pensamento cada vez mais presentes num país em processo de industrialização. Esses valores, porém, entrariam em contraste com as visões progressistas que também marcam o período, encarnadas por Madalena, sua esposa. Assim, Paulo Honório se caracterizaria por uma personalidade que precifica todas as relações e a tudo enxerga como posse. Desse sentimento de posse decorreria o seu ciúme pela esposa. Como se sabe, é por causa desse ciúme obsessivo que Madalena se mata, o que desencadeia a tristeza do narrador-personagem. Um pouco depois, os conflitos da Revolução de 30 prejudicarão seus negócios e a fazenda entrará em completa decadência.
Fica claro, então, que, apesar de escrito em primeira pessoa, o romance é crítico à mentalidade de Paulo Honório, uma vez que essa mundividência burguesa de mundo é o que leva a sua tragédia pessoal. Os críticos chegam mesmo a afirmar que a melancolia manifestada pelo narrador vem da perda de sua posse, de seu objeto de mando, pois o coronel seria incapaz de amar alguém.
Essa leitura é possível, mas, a meu ver, sacrifica a complexidade do romance em nome de sua adesão ao contexto em que foi publicado. Afinal, ela ignora uma série de elementos do enredo que permitem perceber que Paulo Honório não era sujeito assim tão monolítico. Logo no início, o narrador nos diz que, quando era trabalhador alugado na fazenda São Bernardo, se apaixonou por uma moça chamada Germana e por ela foi traído. Ao descobrir, Paulo Honório fere o seu “rival” e vai para a prisão. É somente quando sofre essa decepção amorosa que nascem suas ambições: decide que quer ficar rico. Após sair da cadeia, toma um empréstimo e sai pelo sertão se envolvendo em encrencadíssimas transações, lidando a todo momento com pessoas perigosas. Quando consegue algum capital, decide se aquietar. Não me parece acaso que ele resolva permanecer na sua cidade natal e inclusive comprar a fazenda onde trabalhou, há aí, parece, embora não admitido, um vínculo simbólico com a terra, porém isso somente podemos especular. Porém há uma segunda demonstração de afeto genuína que não pode ser ignorada (embora a crítica ignore): quando enfim consegue comprar São Bernardo e se estabelecer, empreende tempo e dinheiro à procura de Margarida, a doceira que o adotou e criou. Note-se: Paulo Honório não ganhava absolutamente nada com essa empreitada. Ele parece tão somente movido por gratidão e por amor, tanto que se demonstra bastante feliz quando finalmente a encontram numa pequena cidade da região.
Porém digno mesmo de destaque é o que leva Paulo Honório a se casar com Madalena. Um dia ele acorda decidido a ter um filho e já começa a criar planos para o casamento. Só que faltava a esposa. Esse planejamento começa a ganhar forma e o fazendeiro se lembra da filha do juiz da cidade, visto que esse casamento poderia lhe render bons frutos. Porém, quando chega à casa do magistrado, encontra Madalena e ela se torna a única pretendente, mesmo não lhe rendendo nada: trata-se unicamente de uma professora numa pequena escola da cidade. Como notou Antonio Candido bem cedo, o casamento não tem outro motivo que não o amor, o que contraria a lógica econômica que até então Paulo Honório adotara.
Mas me parece que um dos pontos mais interessantes é a origem do ciúme. Muitos apontam se tratar de um sentimento de posse; no entanto, era necessário que houvesse pelo menos algum indício, pois, do contrário, por que Paulo Honório sentiria que sua “propriedade” estaria ameaçada? A origem do ciúme está numa passagem também pouco lembrada. Em certo momento, o fazendeiro passa um carão em Padilha, antigo dono de São Bernardo e agora professor dos filhos dos trabalhadores, em razão de sua baixa produtividade. Como bom Iago, Padilha observa uma fraqueza em Paulo Honório que não se corrige com o status social agora superior: menciona que Madalena, mulher instruída, certamente não se sente bem ao morar em lugar tão rústico e pouco civilizado. Metonimicamente, a fazenda de São Bernardo representa o próprio Paulo Honório, ele mesmo rústico e de origem camponesa. Daí em diante, o fazendeiro passa a desconfiar de todos aqueles que, apesar de estarem abaixo dele na pirâmide social, possuem os atributos que ele não poderia ter. E será que, nesse ponto, em nada a experiência com Germana influencie?
Quando Madalena morre (e chamo a atenção do leitor ao capítulo XXXI, certamente o mais belo e importante do romance), o enlutamento de Paulo Honório é grande demais para ser explicado por simples perda de um objeto. Afinal, mulheres outras havia para serem colocadas no lugar vazio de esposa da prateleira. Porém ele não coloca ninguém no lugar. Decorre dessa perda um completo desinteresse de Paulo Honório pelo crescimento de São Bernardo. As mudanças políticas apenas reforçam uma decadência já anunciada pela impossibilidade do coronel seguir com as atividades administrativas da fazenda com afinco. E é dessa perda irrecuperável, da mulher mas também de algo que ele sequer entende, que nasce a necessidade da escrita do livro. Sua biografia, suas opiniões e causos são meros detalhes, pois o centro da narrativa é o casamento. Por mais que o narrador tente esconder seus sentimentos (inclusive ao colocar no título do livro o nome da fazenda) e por mais que talvez nem ele entenda o que lhe ocorreu, a narrativa é uma elaboração de uma melancolia incurável.
Os capítulos finais, em que o narrador culpa a sua vida agreste e a sua profissão pelo que ocorreu, não explicam o romance: reafirmo, o narrador conta a história, mas é incapaz de entendê-la em absoluto. Madalena não se mata por algo essencial a Paulo Honório, por esse seu pensamento burguês e autoritário. Ela se mata quando não consegue mais tolerar os constantes sofrimentos impostos pelo ciúme do marido.
Por ter um narrador inábil e incapaz de entender e formular o que lhe ocorreu, por essa confissão crua e inesperada, que escapa nos momentos em que os sentimentos se impõem, S. Bernardo abre margem para diversas possibilidades de montagem e interpretação do relato. E é por tal complexidade que me apaixonei desde a primeira leitura.
Texto de
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