Um western para quem odeia western
The Ox-Bow incident, filme favorito de Clint Eastwood, apesar de antigo, questiona os valores representados em vários westerns
Hoje em dia, os filmes de western são bastante questionados. Não é raro ouvir de pessoas, principalmente mulheres, que, apesar da qualidade da direção de diversas obras do gênero, o enredo é no mínimo problemático. Isso porque os westerns tratam, em geral, de um período com certas características que gostaríamos de esquecer: ali a mulher não possui importância alguma, a lei é determinada unicamente pela força e os indígenas são seres que devem a priori ser dizimados. Se fôssemos aplicar uma lógica identitária, no western opera muito fortemente um identitarismo de homem branco.
Embora essas críticas tenham total sentido, pois muitos filmes de cowboy caem mesmo na glorificação da violência, isso não se aplica a todos, sobretudo quando falamos dos filmes que marcaram o gênero. E não me refiro apenas aos mais recentes, como The revenant e Extraña forma de vida. Quero falar de uma exceção de 1943, numa fase em que o western tradicional ainda imperava: The Ox-Bow incident (Consciências mortas, no Brasil).
Conheci esse filme por meio de uma entrevista de Clint Eastwood. Nela, diz que The Ox-Bow incident é o seu filme de western favorito e que muito lhe marcou durante a infância. Ele conta que ia frequentemente ao cinema para assistir aos “bangue-bangues” e, ao comprar os ingressos para o filme, imaginou que se trataria de uma obra como muitas outras do período, sobretudo pela presença de uma figura como Henry Fonda no papel de protagonista. Ele não poderia estar mais errado. Vou dizer o porquê.
O filme é ambientado em 1889, num momento em que a lei deixa de ser estabelecida com base na mira do revólver e na velocidade de saque. Na cidade em que a história se desenrola, há um xerife que segue as leis, um juiz e mesmo alguns cidadãos que reconhecem o valor dos processos legais para a resolução dos conflitos. Porém há ali na cidade o fantasma da violência, dos tempos passados em que a carnificina produzia algo que se confundia com justiça. Os cidadãos, por mais que não o digam explicitamente, sentem falta dos castigos que se equiparavam em tom às revoltas que os crimes causam, por isso reclamam da lentidão e dos resultados do processo legal.
Quando é dito na cidade que um morador honrado foi encontrado morto na estrada e que teve seu gado roubado, rapidamente se cria um grupo para caçar os assassinos e realizar um linchamento, aproveitando-se da ausência do xerife. Mesmo com o apelo do juiz local, que afirmou ser aquele ato também criminoso, os cidadãos partem para o combate, embora alguns relutem. Um deles merece destaque: o prefeito da cidade. Sujeito que lutou na Guerra Civil ao lado dos sulistas (ou seja, dos que queriam a manutenção da escravidão nos Estados Unidos) e que considera que seu filho, homem de boa educação e bons modos, deve se tornar macho, ao encarar aquele ritual de violência.
Quando chegam a Ox-Bow, encontram três homens acampados que tinham a posse de certo número de cabeças de gado: dois americanos, um jovem e um velho, e um mexicano. Tem-se início, após isso, uma espécie de tribunal. Mas, quando um dos lados opta pela barbárie e desrazão, não há debate possível. O tribunal não tem sentido onde não há leis, onde o que vale é a vingança. Naquele lugar, fora dos domínios legais, volta à tona o fetiche pela violência de décadas anteriores. Não havia resposta que fosse capaz de convencer o prefeito (quem tomou a frente e se colocou no lugar de juiz) de que aqueles três não fossem culpados. Quando imperam as leis da barbárie, a dúvida é sanada com a destruição. Pois correr o risco de não destruir o inimigo pesa muito mais na balança do que matar um inocente.
A turba sanguinolenta encontra com os três homens o gado do cidadão que foi morto e a sua pistola. O gado, afirma o líder do trio, foi comprado e o comprovante de venda seria enviado posteriormente. A arma, que estava de posse do mexicano, foi encontrada na estrada. As respostas eram ambíguas e abriam margem para o questionamento. Mas uma vez que se havia já criado a necessidade de exterminar aqueles inimigos e dar vazão aos desejos de destruição, não se pode voltar atrás e recorrer à justiça – ela é lenta e injusta, dirão os mais revoltados. Nem mesmo se permitiu aos acusados o tempo de enviar alguém da cidade onde moravam para corroborar suas afirmações, como se a possibilidade de concretização do desejo de matar fosse com isso prejudicada. Nesse tribunal sem leis, a busca por justiça ou reparação inexiste, a busca pela verdade já não importa.
Mesmo com alguns homens se convencendo da necessidade de levar os suspeitos à justiça, diante da ausência de provas cabais, o grupo de justiceiros leva adiante o seu intento e realiza o enforcamento. Ocorre que, logo após a morte dos acusados, os moradores encontram o xerife, que tinha ido ao encalço dos assassinos. Ele informa não só que o homem não havia morrido (ele acabara de deixá-lo aos cuidados médicos, numa cidade vizinha) mas também que já havia capturado os verdadeiros responsáveis. Após saber do assassinato dos três inocentes, o xerife informa que todos serão punidos – pela mesma lei que até então consideravam branda.
Para além da punição legal, os membros da caçada desenvolvem profunda dor moral. O líder deles, o prefeito, é contestado por seu filho, que lhe joga na cara que toda aquela performance no “julgamento” foi unicamente uma vazia tentativa de mostrar poder. Após isso, incapaz de lidar com a vida de outra via que não a da violência, o ex-combatente dá um tiro na própria cabeça.
The Ox-Bow incident frustra todas as expectativas daqueles que esperam os previsíveis tiroteios dos westerns mais simplórios. Em vez de criar a imagem do herói misterioso que subjuga a todos pela força, o filme questiona mesmo a validade de uma ordem social que se afunda na violência e na busca pelo poder.
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